Versos que o tempo não apaga
Por Rodolfo Sgorla da Silva
O poeta Odilo Gomes faleceu em 2020. Mesmo assim, duas letras inéditas de sua autoria foram defendidas no palco da Seara da Canção Gaúcha no ano passado
“Eu morei na Rua das Tropas. Se eu fechar os olhos ao ouvir a tua música, eu escuto o pataleio das mulas que vinham passando. Sinto o cheiro da poeira que subia da estrada de chão. Me lembro de minha mãe e de minha avó dizendo para ficar em casa porque era perigoso quando uma tropa passava”. Esse é o relato de Reny Falleiro Dozza, de 89 anos, que morou na Avenida Pátria em Carazinho quando esta se chamava Rua das Tropas. As lembranças tão fortes de sua infância ganham força cada vez que ouve a música Rua das Tropas, revelada no palco da Seara da Canção Gaúcha em 2022.
Hoje morando em Passo Fundo, o tema é um assunto frequente de conversa com seu fisioterapeuta Alexandre Marek, um dos compositores do chamamé. “É uma satisfação ver as pessoas sendo tocadas pela nossa música, o que também demonstra a grande responsabilidade que temos ao compor”, comenta Marek.
O autor carazinhense compôs a letra de Rua das Tropas junto com um grande ícone da poesia em Carazinho, Odilo Gomes. Seus irmãos Anderson e André Marek são os autores da melodia. Gomes faleceu em 2020 aos 95 anos e o fato de após a sua morte ainda haverem composições inéditas de sua autoria chamou atenção de quem acompanhou a 21a edição da Seara.
– Essa música estava pronta há uns oito ou dez anos. Ela foi feita para Carazinho e só seria inscrita em uma Seara. Na época, quando seu Odilo me entregou uma parte da letra, fiz o restante dos versos e demos uma burilada para encaixar aquele texto na métrica de uma música, completando a história da Rua das Tropas. Seu Odilo era uma pessoa incrível e humilde. Ele não palpitava sobre a parte musical. “Isso é parceria”, como ele dizia – recorda Alexandre Marek.
O chamamé levou o prêmio de Melhor Tema sobre Carazinho e/ou Sobre a Seara no festival. Mas não foi apenas Rua das Tropas que levou a assinatura de Odilo Gomes na última Seara. A zamba Cavalgada, musicada por Maurício Machado da Silveira, teve Gomes como autor de sua letra e também foi uma das músicas que subiram ao palco no festival em 2022.
– No ano passado falei com a filha do seu Odilo, a Cintia, para fazer trabalhos musicais novos a partir de letras que ele tinha guardadas. Ela autorizou e fui trabalhando algumas composições, entre elas Cavalgada. O incrível é que no caso de Cavalgada a parte musical foi ficando pronta quase que automaticamente, de forma muito rápida. Não tenho ideia de quando essa letra foi feita pelo seu Odilo. Ele tinha muitas composições – comenta Silveira.
Ao compor Cavalgada, Maurício Silveira reviveu uma parceria de outras Searas com seu Odilo, como sempre foi carinhosamente chamado pela comunidade carazinhense, afinal já haviam composto juntos outras músicas para o festival. Um dos destaques dessa parceria é Luas e Searas, vencedora da 8a edição do festival, em 1988.
– Desta vez foi um pouco diferente porque ele não estava presente. Talvez até uma responsabilidade maior ao buscar uma melodia que, na minha imaginação, ele iria gostar. De certa forma revivi Luas e Searas. Ao compor Cavalgada, vinham lembranças do seu Odilo – revela.No palco da Seara, o intérprete de Cavalgada foi Rodrigo Xavier, que é sobrinho neto de Gomes. “Na 13a Seara defendi a música De Pai para Filho, em que parte da letra era do Dr. Odilo, mas quase que a totalidade era de autoria do meu pai. Então eu tinha um sonho de um dia defender uma letra inteiramente composta por ele. Foi uma grande emoção interpretar Cavalgada por realizar esse sonho e também pela repercussão da música junto ao público. Fomos muito aplaudidos. Acredito que de onde o tio Odilo esteja ele tenha ficado contente com o resultado”, afirma o intérprete, que recebeu o prêmio de Melhor Indumentária na Seara do ano passado.
Mais letras inéditas do Dr Odilo
Se as duas músicas reveladas no palco da Seara em 2022 agradaram ao público, os fãs podem comemorar a existência de mais obras inéditas de autoria do Dr. Odilo. “Comigo tenho outra composição dele e a música está pronta. Se chama ‘Cadê o respeito?’, falando da importância de respeitar o meio ambiente”, comenta Silveira.
– Tenho mais uma música com autoria do seu Odilo guardada. A letra foi feita em parceria por nós dois e o objetivo é enviar para a triagem da próxima Seara. Ela é do mesmo período de ‘Rua das Tropas’ e nunca foi enviada para nenhum festival. Seu Odilo apreciou a música pronta. Essa composição tem um caráter mais divertido e é a última letra que tenho guardada feita em parceria com ele”, revela Alexandre Marek.
O grande legado do poeta
Os músicos são unânimes ao destacar a imensa representatividade da arte de Odilo Gomes e o grande legado deixado por ele. “Desde pequeno sempre tive vínculo com a música e prestava atenção em poesias, letras de músicas e melodias. As letras do tio Odilo sempre me chamaram muito a atenção. Quem é carazinhense sabe que ele é muito renomado e fez grandes obras. Ele tinha uma inteligência acima da média. Foi um grande poeta e era um visionário”, elogia Xavier.
Autor de muitos poemas, letras de músicas, de hinos e do livro Garimpando Rimas, entre outras iniciativas, Gomes possui uma grande representatividade na cultura carazinhense. “O pai sempre foi um grande orgulho para a família. Ele foi advogado e professor, mas a poesia era o que ele mais gostava e ele tinha uma grande riqueza cultural. Fiquei feliz de ver duas letras dele na última Seara e, de onde está, com certeza ele também ficou. Foi emocionante. Ele amava a Seara”, ressalta Cintia Gomes Lyrio, filha mais nova do poeta.
Marek também elogia a trajetória construída pelo poeta e recorda que procurou seu Odilo inicialmente como fã, buscando aprender mais sobre a arte da composição. Os dois viraram amigos, passaram a compor juntos e o letrista se emociona ao falar da saudade que tem do grande poeta. “Perdi meu avô muito cedo e era como se estivesse junto com meu avô quando estava com seu Odilo. Ele era agradável demais. Se eu pudesse ter alguns minutos novamente com ele, eu agradeceria. E passaria esse tempo abraçado nele como forma de gratidão”, destaca.